"Vós sois a luz do mundo." Mt 5:13

Categoria: Outros

Construir e habitar

Se o homem não construir sua morada… não terá onde habitar.

Grande fonte de sabedoria é meditar sobre a finitude humana. “Conhece a ti mesmo“, dizia o oráculo de Delfos. Eis-nos pois, diante de um dos mais impactantes fatos acerca de nossa condição humana: a temporalidade. Somos seres temporais, isto é, habitantes do tempo – escorregamos sem cessar entre o passado e o futuro e nosso presente é sempre uma fração fugaz de um todo maior. Por isso, em cada instante, o homem só pode isto ou aquilo, atualizando um número finito de potencialidades e abdicando por ora das demais. Nosso presente é como uma lupa que se concentra ora sobre esta, ora sobre aquela coisa e assim sucessivamente. Este escorregar inevitável do homem constitui um dos elementos mais fundamentais da estrutura de todas suas vivências, e é o que denominamos por este nome “tempo”.

Sem dúvida o “tempo” é um grande mistério. Ainda assim, ele ilumina nossa compreensão do homem. O homem é este ser que inquieto, transita sem cessar, não tem repouso. Por causa desta sua natureza que transita constantemente, o homem descobre uma vocação fundamental: ele é um ser chamado à urgência de uma tarefa – a tarefa de construir.

É no cumprimento desta tarefa que o homem transcende a finitude do instante. Se ele deve viver, então, a cada instante concentrado sobre isto ou aquilo, porquanto esta é a própria estrutura de suas vivências, é necessário que ele estenda seus esforços no tempo a fim de construir algo que possa transcender a caducidade desta finitude. Sua obra custará e valerá então, o somatório de muitos instantes reunidos.

Ora, o que é isto, construir? Sabemos que nenhuma grande obra se faz do dia para noite. Toda construção é um processo gradual que toma várias etapas e exige do homem um empenho ordenado que se dobra e se concentra repetidamente sobre o que deve realizar. Ao cabo de muitas tarefas, ele chega talvez a realizar “a grande tarefa”, porquanto para construir, por exemplo, uma casa, o homem precisa atravessar muitas etapas – conquistar e reunir recursos, projetar, lançar os fundamentos e ir avançando parte por parte até concluir a obra como um todo. Ademais, quando chega também a concluir essa construção, não se exclui a necessidade de ter que reformá-la muitas vezes.

O que é, então que deve o homem construir? O impressionante sobre o homem é isto: a obra capital de sua vida não é nada que esteja fora dele. Sua opus magnum é ele próprio. Em outras palavras: ele precisa construir-se. Esta é, afinal, a tarefa de uma vida, isto é, a tarefa de toda sua vida.

Por isso recordemo-nos que “De facto não temos aqui na Terra uma morada permanente, mas buscamos a cidade que há de vir.” (Hb 13:14). Se nossa morada não é na terra, mas nos céus, então quem são os habitantes do céu? Habitante do céu, muito naturalmente, é todo aquele que lá tem morada. E estamos a construi-la, neste exato momento. De que modo, porém? A cada vez que escolhemos entre o bem e o mal, isto é, entre Deus e o nada, estamos construindo ou não construindo nossa morada. Em verdade, não apenas não construímos, mas também muitas vezes destruímos o que já construímos ou aquilo que foi em nós construído.

Com efeito, a nossa obra não é um fazer do nada (ex nihilo), mas somos em verdade chamados a sermos cooperadores da obra de Deus. Não temos aqui autoria exclusiva; muito pelo contrário – o que temos é o que recebemos. Tudo vem da graça de Deus, que realiza a obra com nossa cooperação. A liberdade nos foi dada, e a sua posse implica na possibilidade de não cooperar na obra da construção, e de até mesmo atrapalhá-la.

Para que isso não ocorra, devemos edificar nossa morada sobre a rocha que é Cristo. Cristo é o que em nossas obras permanecerá… isto é, tudo o que se faz em Cristo, com Cristo e por Cristo, durará para sempre, pois Cristo é Deus, Deus é amor, e “a caridade jamais acabará.” (1Cor 13:8)

Inacabado?

Ao iniciar a leitura da Suma Teológica antes de ontem me vi tomado por um certo desânimo, com o qual logo me encontrei em vias de arrolar todos os motivos que tenho para desistir desde já deste projeto. Afinal, pensei comigo: a) A Suma é tão grande e eu, tão pequeno; b) Tomás é um gênio, e eu, tão limitado; c) A Suma tem tantas páginas, e eu, tantos afazeres.

Mas eis que hoje à noite me vi inspirado por certos pensamentos que quero agora compartilhar. Em primeiro lugar me vi a perguntar:

Quantas coisas será que terei que deixar inacabadas ao morrer?

E logo essa pergunta se tornou outra, a meu ver mais importante:

Quais são as coisas que eu não posso de forma alguma deixar inacabadas?

E com isso fui me sentindo mais aliviado, até o ponto de ficar feliz. Mas o que aconteceu com minha angústia?

Preciso reconhecer que recebi uma valiosa ajuda de um grande autor espiritual, o Lorenzo Scupoli, que em minha leitura espiritual diária pela manhã me serviu como aquela “voz de Deus que fala pelas criaturas“: no Capítulo 20 de sua obra “O combate espiritual”, Lorenzo ensina-nos como “atomizar” nossas dificuldades. Assim, quando estamos desanimados por uma tarefa muito grande e difícil, devemos fazer uma operação psíquica de divisão. Como assim? Pegamos o que é complexo e dividimos em partes menores. Como manobra adicional, focamos nossa atenção toda nessa tarefa, com se estivéssemos a imaginar que não temos outra tarefa a realizar senão aquela com a qual nos ocupamos neste momento.

Assim, nos aliviamos daquela ansiedade que sentimos ao iniciar uma tarefa já pensando em tudo o que ainda não realizamos, isto é, aquilo que ainda temos por fazer. Mas esse pensamento é fonte de muita angústia, porque, ainda que avancemos bastante, não nos sentimos nunca satisfeitos, visto que a balança dos nossos feitos pesa sempre contra nós, isto é, há sempre muito mais coisas que temos que deixar inacabadas hoje do que realmente terminadas. E detalhe: precisamos ir dormir com isso, todos os dias.

Foi então que um outro pensamento me invadiu, penso que sob a influência de Santa Teresinha, esta santa da “pequena via”, que sempre esteve tão próxima de mim, visto que moro há 27 anos perto de uma paróquia que leva seu nome.

Santa Teresinha me ensinou que talvez o mais importante não seja fazer muitas coisas, mas fazê-las bem, sejam elas pequenas ou grandes, oferecendo-as todas como oferta agradável a Deus. Desse modo tudo estará, ao final do dia, completo, ainda que faltem muitas coisas por fazer. É que o que realmente importa não é terminar de realizar todos nossos projetos , pois de nada adiantaria terminá-los se eles não tivessem o preenchimento correto – seriam ocos. Com efeito “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela.” (Sl 127)

Mas o que é isto que deve preencher tudo o que fazemos? Suspeito que haja alguma coisa que devemos colocar em tudo o que fazemos, da menor até a maior. Em uma comparação simples, é como fosse uma substância secreta, um ingrediente fundamental que torna todas coisas que fazemos preciosas. É uma palavra importante demais para que seja dita de novo como se fosse algo que nós já compreendemos e estamos fartos de ouvir. É a palavra mais importante e mais gasta de todas, e por isso não a direi, pois imagino que vocês já saibam bem do que estou falando.

Lembro-me agora de alguns desenhos que fiz para meus pais quando era criança. Eram todos muito toscos e muito iguais. Retratavam uma família de palitinhos felizes com o sol sorrindo no fundo, um coração e uma casinha mal desenhada… Pergunto-me porquê. Mas meus pais não pareciam se incomodar. Afinal, eles não estavam preocupados com a técnica artística empregada. Eles amavam os desenhos – prova disso é que ou guardavam com carinho ou então colavam na porta de seus armários – justamente por serem tão toscos, e ao mesmo tempo, tão significativos.

Acho que Deus é mais ou menos como meus pais. Tudo o que temos pra oferecer a Deus é sempre muito tosco comparado ao que ele mesmo é e já possui. No entanto, ele não me parece incomodar-se com isso. Pelo contrário, gosto de pensar que ele coleta cada pequeno presente tosco que oferecemos para ele com muito cuidado e carinho, e guarda-os em seu coração. Gosto também de pensar que talvez algum dia Ele irá nos mostrar de novo cada um desses presentes que demos para Ele. Meu receio, porém, é que nesse dia nós nos sintamos muito tristes por ter dado tão pouco a um Pai que merecia tanto, e que recolhia cada pequeno presente nosso com tanto amor e carinho.

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